20080830

eram os dias depois da fome


12.

era o sol de maio
brincava na fábrica de ferrugem
a minha barriga era o nariz
pátio alegre e cinzento de tempo
eu sabia que não estavas ali
amarelo
junto aos teus braços caído



16.

escrevo sem a pressa de te incluir
na memória de pedra
e ao correr do sangue sobe frio
encantos lenços de uma grécia
que não salta do tempo de secretárias
por baixo do nariz grande a desfazer-se



17.

eram os dias depois da fome
— proibido fechar janelas —
voava em imagem por toda a cidade

eu só sabia pensar em mim
quadrado dentro do quadrado



5.

o quadro negro era uma máquina
longe da cervejaria onde o motor
de gritos e lamúrias estendia
entre braços e abraços uma correia de transmissão
livre de deus e do capital aparentes
era o suporte de tudo o que ousei repelir
o capitalismo e as religiões do mundo
tudo na sopa anónima e franca



18.

adeus pipocas.
agora não vou parar
áfrica, há-de sair de dentro de mim
para o meu lado, arrancada
à minha volta
quase uma estrela.
. áfrica


Carlos César Pacheco, Agosto de 2005

20080823

a casa do ser é a linguagem


o grande poema azul

versos perdidos no tempo vozes cortadas
quero parar, até ao fim de estar aqui
a olhar repetido
um dia hei-de ser pequeno nos meus braços
de ti um olhar que foge, se desvia
isolado

hei-de saber parar

Carlos César Pacheco, 2005, Dezembro



a casa do ser é a linguagem

nessa casa habita o homem

caminhos que levam a lado nenhum
não são de papel nem de lava
/ rasgam o tempo

o verdadeiro caminho esta ladeado por muros
um caminho cercado
/ não pode ser o verdadeiro

Carlos César Pacheco, 2006, 30 de Abril

20080816

a sombra quente do orvalho


um dia acaba dentro de outro
começa cedo e finda dentro do outro
repetido até destruir a memória
a capacidade de escrever, de ser
acaba/começa amálgama indistinta
até renascer a vontade de ir para casa
indistinta e distante, forte depois
até dar por mim parado na rua
onde hei-de aprender a voltar a andar

à medida que caminho e me afasto
dos pensamentos onde estava
o espaço que ocupo desloca-se comigo
na tarde íngreme da calçada
onde estriba o eléctrico outra vez
cheio de risos e de sonhos, ao longe
aproximo-me de outros pensamentos
passo por passo - quieto.


(continua)


Carlos César Pacheco, Novembro de 2005

20080809

canção de amor


1.

gostava de ser criança outra vez
para te poder procurar, através dos anos


no espelho vejo um brilho triste
/ são dos olhos que não te reflectem

acordei com o desejo de beijar-te as mãos

tenho um sorriso nos lábios, penso em ti



2.

acredito com a certeza da grande muralha da china
que um dia este amor há-de passar

tenho vontade de não dormir / irresistível tentação
quero fazer nada

a grande muralha abriga o meu coração disforme

o pensamento aberto encontra o silêncio
palavras com o sentido de tudo o que quer ter sentido

quero ir para o espaço, deixar a terra natal
antes de não existir, sou, agora, pleno, vivo / inerte

que sorte tem o mundo por existires
a vida é curta mas gostava de te amar para sempre



3.

/ pensamento ordenado – para quê?
/ vale a pena estar parado
/ fazer nada
/ estoirar com cada segundo
/ pairar
/ esquecido do tempo, abstracção, fútil, prática

/ quero ir à mongólia, diluir-me na música, dias depois de dias

tudo o que tem interesse prático,
.................. disfarça o que realmente importa
.................. / ser



4.


sou um touro
com uma lança trespassando o coração
corro pela lezíria, livre
sem pensar
adormeço abrigado pelas acácias

sou um touro meigo, preto

sou um touro
com o coração trespassado por uma lança
transporto um sorriso nos lábios
corro pleno de vida, agora
com sede de amar todos os companheiros
caminho de braços abertos

na estrada larga
a poesia transborda nos meus olhos
não tenho que compreender o mundo
sorrio sem ter de sorrir

onde estou? // sou



5.

estou aqui preso nesta jaula
uma jaula redonda e muito grande, é certo

uma deusa da antiguidade clássica
porque hão-de fazer-se coisas com sentido
escrever significando o perceptível

posso caminhar em qualquer direcção
que as paredes se afastam de mim
cercando-me à velocidade com que caminho
agrilhoado pela força da gravidade

/ porque desejo o impossível?
a jaula é tão grande que parece plana



6.

os antigos fenícios, antes deles os chineses
mas esses não são os meus antepassados

/ era pequeno e o mundo parecia infinito


Carlos César Pacheco, 9 a 28 de Agosto de 2006

20080802

oito



um8


poder escrever qualquer coisa
rir-me até os meus olhos desaparecerem na água

adormecer quando estivesse cansado
— mas não me fecho
quando estou quase morto
acordo





dois8


acabar eu
lembrava-me um muro à volta
esquecer-me





três8


não ter
corria agito os braços
sentado





quatro8


amar-te-ia
depois de estás deitada
olhava





cinco8


depois
era monótono sempre à volta
o dia claro
gatinhava até não-sei-o-quê
, arranco da boca
um e outro





seis8


era também
a doçura dos teus olhos,
e havia também
(e)s(t)ão
podres na minha língua





sete8


tinha
as mãos frutos secos
apodreciam
sou





oito8


franzi ligeiramente a testa
doem-me os olhos
um dedo coça o pé
os cães
ladram enquanto eu corria lembro-me
estou
sem mais





nove8


posso dormir
(uma árvore no meio da praça uma árvore aberta em
chumbo)





dez8


sou

energia pleno vivo
zero





onze8


corrias até
vinham não se sabe como
põe-se ao lado
de onde tu
ela
és





doze8


aqui deitado
és
queria os teus ossos ao lado da poeira





treze8


rasgar a pele
abro a carne
no
além
da
carne
vi os ossos
com os gestos
todos
febril





narração8


houve a água
houve a areia
houve o cimento
houve o tijolo
estou aqui





quinze8


estás aqui
lembrei-me o teu peito
grande
e os braços à volta
nuvens
firmes
em mim



Carlos César Pacheco, 27 de Setembro de 1995, 0h30-1h40

Palavras nos meus poemas:

A minha foto
[autobiografia]


gosto principalmente de não fazer nada, assim deitado de costas, aguardo que as nuvens formem letras por cima da minha cabeça (cavalos, não! - se formarem cavalos, fico logo irritado, mesmo que chova em seguida); aprecio principalmente os textos ritmados , e se se trata de poesia, o soneto; quanto ao conteúdo, que esconda sob a singeleza aprofundada reflexão; e a música, a composição dos elementos para instrumentos naturais, que seja harmoniosa e com conteúdo formal; em suma, aprecio boa música e boa literatura (nada de modernices); também gosto de melancia.

Nota: todos os textos neste espaço estão registados no IGAC, mas podem ser livremente copiados, desde que me mencionem como autor, tenham o link http://forteondaserena.blogspot.com/ e reproduzam esta nota, sem alterações.
.
[biografia]

Não (se ?) sabe se nasceu. Segundo o pai: “nunca há-de ir a lado nenhum”. Não frequentou a escola de Belas-Artes. Frequentou, sem êxito perceptível, a faculdade de ciências. Segundo alguns familiares: “é egoísta e só pensa em si próprio”. ...linguagem... ...conceptual... ...som... (...de que é a forma do espaço agarrado por uma mão aberta...) Em Agosto de 1992, vestiu-se, comprou um jornal, leu diversos anúncios. Segundo o pai: “ainda não sabe o que anda aqui a fazer”. Não conheceu Feldman, Scelsi ou Nono. É quase cego, gastando por isso muito tempo a olhar. Diz frequentemente: «século xx», «trinta e cinco mil anos», «dezasseis mil milhões de anos». Não faz nada.

Não assistiu à conferência “A arte como modo de conhe­cimento” de Jacob Bronowsky nas A. W. Mellon Lectures in Fine Arts em 1969, na National Gallery of Art de Washington D. C.; Segundo o pai, "vai morrer a fome pois não gosta de trabalhar”. Não se sabe onde estava, em Maio de 1833; Apesar de gostar de estar sentado, gosta muito de andar de comboio; “Consciência” — conceito fundamental; Escreve e fala fluentemente português; Em 1997 viu uma árvore; Desenvolveu um sistema que lhe permite estar vivo sem que o pareça; Gosta de estar parado; Não gosta de dormir; Gosta de fazer.
.

ao mar

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ou o silêncio