20090825

o segredo

sabes guardar um segredo, perguntou a velha, visivelmente ansiosa. Outros olhos, mas não os dela, notariam o tédio na resposta mole que ele atirou. Com crescente ânimo, começou a falar-lhe dos seus tempos de juventude, onde jurara não conceber. Discorreu durante minutos, sempre distante, como se falasse de longe, ou nunca tivesse sido mais do que uma miragem; enquanto ele aqui e ali empenhando-se em segurar a cabeça, tonta de sono, apanhava uma ou outra palavra, vagamente consciente da impossibilidade de as recontextualizar, da facilidade com que ela poderia aperceber-se e da fatalidade que isso seria. A velha acabou por calar-se, e silêncios depois, pediu-lhe um copo de leite. Como um balde de água fria; aparentou resolução de movimento; abandonou a mão dela sobre a mesa; e distanciou-se na direcção do corredor, sem deixar de exibir uma carantonha pensativa, como se reflectisse nas palavras



que não haviam chegado sequer a ecoar dentro dele, mas tão atrapalhado, que ia tropeçando no banco, algures no escuro esbranquiçado da cozinha. Enquanto abria a porta do armário, pegava na chávena, retirava o leite do frigorífico, voltava a fechá-lo, pegava numa colher e procurava o açúcar. Começou lentamente a formar-se no seu espírito o discurso da velha, como se adormecida, uma parte de si, tudo tivesse escutado e estivesse agora, como quem acorda lentamente numa manhã quente, a contar-lhe tudo. No mesmo tempo que uma sensação desconfortante o invadia, o tom grave do discurso monocórdico e o significado roxo, de contornos cada vez menos flácidos; a tudo isto foi arrancado, pelo ranger soturno da cancela a abrir-se. Voltou à sala. A velha estava morta, com a mão pousada sobre a mesa . . . ..


Carlos César Pacheco, 17 de Outubro de 1993, 18h

20090811

cada instante em cada instante


Diário
23 de Outubro
8:55
agora vivo os dias felizes
sou uma árvore no teu caminho
guardo o teu abraço na minha memória milenar
9:20
agora conhece os dias da paixão
ignora as definições
vive cada instante em cada instante
não penses, sente
/ só assim agarras o momento
9:42
ontem disseste-me que seria um velhinho
com a sua bengala
encantando outras velhinhas
num mundo de onde já tinhas desaparecido
na altura certa
/ fiquei triste
9:45
gosto de escrever poemas infantis
usar linguagem simples
amar-te
11:56
adormeci agarrado a almofada
eras tu dentro de mim
/ com a tua voz, o teu silêncio
17:48
gostava de desistir das palavras
fruir apenas o sabor da tua voz
/ do teu silêncio
Diário
24 de Outubro
10:00
amar-te devagarinho
junto ao sul
junto ao sol
11:30
apareci no teu sonho
nunca te pedirei mais do que me podes dar, disse
/ serenaste tranquila


Carlos César Pacheco, 23 e 24 de Outubro de 2008

20090804

tulipas e pipocas


estende o braço e verás que ao longe
o fogo se equilibra entre duas montanhas
a tua volta, as aves cantam

acordei e dei-me conta que voltei
a fazer coisas com significado
e voltei a perder-me
/ de mim

precisamente o que não tem significado
é o que tem sentido


Carlos César Pacheco, 6 de Julho de 2009, 19h

20090728

principio de um alfabeto

.
Adormeço esquecido
e corro nos teus dedos
dias intensos de luz

Beijo as formas onde regresso
do lado dos vulcões
descanso nos teus braços

Com o rosto erguido ao vento
norte incompleto esse sul
onde estava nu, povoado

Desejo o ardor dos teus olhos
nas palavras que me aconchegam
estremecem acima das ondas

E faz com que nunca me abandone
o segredo da garça real
bandoleando ao vento

Fico com a sensação
que cheguei
ao lugar que faltava

Galgar depois das nuvens
onde caminhei parado
junto a orla onde estive sempre

Habitado pela inquietação
encontrei o sal, o lugar onde
posso ser, onde estou

Imóvel contemplando a sombra
das tuas mãos ao longe
perto de mais

Junto a mim quero
o lugar onde pertenço afinal

completo, pleno - voo no vale inundado

Longe de tudo
, de todas as palavras
grandes que não quero saber
apenas de ti o silêncio

Mar me importa

.

Carlos César Pacheco, 29 de Setembro de 2008

Palavras nos meus poemas:

A minha foto
[autobiografia]


gosto principalmente de não fazer nada, assim deitado de costas, aguardo que as nuvens formem letras por cima da minha cabeça (cavalos, não! - se formarem cavalos, fico logo irritado, mesmo que chova em seguida); aprecio principalmente os textos ritmados , e se se trata de poesia, o soneto; quanto ao conteúdo, que esconda sob a singeleza aprofundada reflexão; e a música, a composição dos elementos para instrumentos naturais, que seja harmoniosa e com conteúdo formal; em suma, aprecio boa música e boa literatura (nada de modernices); também gosto de melancia.

Nota: todos os textos neste espaço estão registados no IGAC, mas podem ser livremente copiados, desde que me mencionem como autor, tenham o link http://forteondaserena.blogspot.com/ e reproduzam esta nota, sem alterações.
.
[biografia]

Não (se ?) sabe se nasceu. Segundo o pai: “nunca há-de ir a lado nenhum”. Não frequentou a escola de Belas-Artes. Frequentou, sem êxito perceptível, a faculdade de ciências. Segundo alguns familiares: “é egoísta e só pensa em si próprio”. ...linguagem... ...conceptual... ...som... (...de que é a forma do espaço agarrado por uma mão aberta...) Em Agosto de 1992, vestiu-se, comprou um jornal, leu diversos anúncios. Segundo o pai: “ainda não sabe o que anda aqui a fazer”. Não conheceu Feldman, Scelsi ou Nono. É quase cego, gastando por isso muito tempo a olhar. Diz frequentemente: «século xx», «trinta e cinco mil anos», «dezasseis mil milhões de anos». Não faz nada.

Não assistiu à conferência “A arte como modo de conhe­cimento” de Jacob Bronowsky nas A. W. Mellon Lectures in Fine Arts em 1969, na National Gallery of Art de Washington D. C.; Segundo o pai, "vai morrer a fome pois não gosta de trabalhar”. Não se sabe onde estava, em Maio de 1833; Apesar de gostar de estar sentado, gosta muito de andar de comboio; “Consciência” — conceito fundamental; Escreve e fala fluentemente português; Em 1997 viu uma árvore; Desenvolveu um sistema que lhe permite estar vivo sem que o pareça; Gosta de estar parado; Não gosta de dormir; Gosta de fazer.
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ao mar

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ou o silêncio